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Foto: Arquivo da Igreja Positivista do Brasil |
Verde e amarela. Bastam duas palavras, duas
cores, para evocar a bandeira brasileira. Em todo o mundo será das mais
reconhecíveis. Por causa do futebol, certamente. A selecção brasileira – a
"canarinha", assim chamada, precisamente, por causa da cor amarela –,
é a que conta mais títulos na história do futebol mundial, o
"desporto-rei", e há muitas décadas que nos estádios por esse mundo
fora tanto as camisas como as bandeiras verdes e amarelas são brandidas em
êxtase e adoração. Nem só pelos brasileiros.
São muitos os que se vestem com as duas cores
consideradas sinónimo de alegria de viver: no futebol, no samba ou no carnaval,
as maiores imagens e metáforas do país, não apenas fora de portas, mas também
no seu interior.
Mas apesar de toda a popularidade daquele que
é considerado o maior símbolo nacional, para a maioria dos brasileiros
permanece envolta em mistério a origem das palavras que se lêem na bandeira:
"Ordem e Progresso".
Se lhes perguntarem, quantos brasileiros
saberão responder que "Ordem e Progresso" se deve ao positivismo, a
doutrina filosófica do francês Auguste Comte (1798-1857), e à fórmula que a
resume: "O amor por princípio, e a ordem por base; o progresso por
fim"?
Este desconhecimento estender-se-á à própria
influência das ideias positivistas no fim do império e proclamação da
república.
Na historiografia brasileira, não é incomum
encontrar-se o positivismo remetido a uma nota de rodapé na qual se conta, em
jeito breve de curiosidade, o episódio da bandeira. Exemplo disso é a recente
obra "Brasil: Uma Biografia", de Lilia M. Schwarz e Heloisa M.
Starling. É "en passant" que as duas autoras despacham a escolha da
bandeira, referindo apenas "o lema positivista de 'Ordem e
Progresso'", sem explicar a sua origem.
Noutra breve menção, desta feita sobre a nova,
à data da proclamação da República (15 de Novembro de 1889), "figura
feminina" que representava o regime, refere-se no livro que, no Brasil,
"a alegoria fracassou, mesmo em sua versão positivista, espelhada em Clotilde
de Vaux: poeta e escritora francesa, musa de Augusto Comte, que o teria
inspirado na criação de sua 'Filosofia da Humanidade' e logo se transformara em
símbolo republicano".
Não será de admirar, portanto, que tenham sido
os próprios positivistas a chamarem a si a tarefa de contar a história das
ideias de Comte no Brasil. Mas também aqui "desconhecimento" é, uma
vez mais, palavra de ordem.
Talvez a maior referência seja "História
do Positivismo no Brasil", de Ivan Lins, que, com as suas 874 páginas, é
habitualmente apresentada como "monumental".
No prefácio da obra que conta o percurso
brasileiro da filosofia de Comte até à data em que foi publicada, 1967, Lins
lamenta e explica: "Num país, como o nosso, onde a generalidade das
famílias não tem o hábito de guardar os papéis de seus chefes, torna-se difícil
estudar e documentar a acção dos que, em graus diversos, se filiaram ao
Positivismo e contribuíram para a sua difusão entre nós".
Se a família era o cordão através do qual a
doutrina ia sendo transmitida, o favorecimento de uma atmosfera privada e
íntima, juntamente com o preceito positivista que desencoraja o proselitismo,
terão contribuído para que a influência não tenha sido mais alargada, ou, pelo
menos, não tivesse sido maior o reconhecimento desse efeito.
Com as ideias positivistas mantidas, qual
tradição, no estreito de um fluxo sanguíneo, foi entre família(s) que ficaram
dispersos e incógnitos documentos que ajudariam a melhor contar a história.
Estafante trabalho terá tido, por isso, Ivan
Lins, que desempoeirou documentos e descobriu provas, revelando novos dados que
até aos nossos dias continuam essenciais, caso das primeiras referências ao
pensamento de Comte no Brasil, depois de detalhar, estado a estado, os
primeiros sinais da presença do pensamento positivista, ou de correspondência
inédita entre a escritora Nísia Floresta e Auguste Comte.
Mas como se não bastasse a natureza interior,
quase secreta, dos papéis que iam sendo passados de mão em mão, o Templo da
Humanidade, no Rio de Janeiro, desde 1897 a sede da Igreja Positivista do
Brasil, bem como o seu arquivo e antiga prensa, sofreu, em 2009, graves danos
materiais com o desabamento do telhado, atacado por cupins (térmitas). Sem
cobertura, as chuvas tropicais foram inclementes e a destruição desoladora. Em
boa parte dos casos, o que não se perdeu ficou em mau estado.
Desde essa altura que o templo, o primeiro
prédio religioso no mundo construído para abrigar o culto da Religião da
Humanidade, é alvo de um projecto de restauro e revitalização que aguarda uma
data de conclusão.
Em Maio de 2015, o Instituto Estadual do
Património Cultural (INEPAC), órgão subordinado à Secretaria de Estado de
Cultura do governo do estado do Rio de Janeiro, fez à Igreja Positivista do
Brasil a proposta de concorrer ao Programa Memória do Mundo, da UNESCO, que tem
por finalidade identificar conjuntos
documentais com valor de património da humanidade, para inseri-los no Registo
Internacional de Património Documental.
Coincidentemente, foi logo depois de ter
terminado a série de visitas ao Templo da Humanidade para a realização do
documentário que equipas do Museu Cada de Benjamin Constant e do INEPAC, bem
como de outras instituições, em conjunto
com elementos da Igreja Positivista do Brasil, inciaram os trabalhos para
determinar o conjunto a ser apresentado na candidatura. Uma parte fundamental
deste trabalho consiste na análise das publicações da Igreja Postivista do
Brasil, desde sua fundação, em 1881.
A inscrição dos folhetos da IPB no Programa
Memória do Mundo da UNESCO é, por isso, um passo deveras importante para a
futura preservação dos acervos da instituição.
Mas outro cenário desolador foi encontrado a
1500 km a sul do Rio de Janeiro, em Porto Alegre.
No Museu da Comunicação Hipólito José da Costa,
onde se guardam preciosos vestígios do passado positivista do Rio Grande do
Sul, alguns destacados no filme "A Última Religião" (casoso da
notícia do jornal "A Federação", datada de 19 de Janeiro de 1928,
dando conta de que, naquele dia, "Será inaugurada a Capella da
Humanidade", bem como um raro um exemplar da primeira edição da
"Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul", de 1891),
durante 12 anos, o desleixo foi diário.
Por todo o Brasil, entre o que se perdeu e o
que se salvou, conta-se (ou contar-se-ia, melhor dizendo) o que se dispersou.
Só dá para imaginar.
Escreveu Lins: "Acham-se estes perdidos
em opúsculos e livros raros, em colaborações de jornais e revistas da época, em
discursos e escritos sepultos nos anais das assembleias legislativas da União e
dos estados, em sentenças e decisões judiciárias, em documentos que só se podem
manusear nos caóticos e pouco acolhedores arquivos das nossas escolas
secundárias e superiores, onde vários discípulos de Comte leccionaram, ou perante
cujas congregações defenderam teses de doutoramento ou de concurso."
Também nesta disseminação se pode ver o escopo
da influência das ideias de Comte no Brasil. Todavia, quanto maior a difusão se
supõe, mais difícil será descobrir o fio à meada.
Talvez por isso, "os que se têm ocupado
com a história do Positivismo no Brasil quase exclusivamente restringem o seu
estudo à acção de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, fundadores da Igreja e Apostolado
Positivista do Brasil".
Só que há mais, como também atesta outro livro
que sintetiza a história do positivismo no Brasil, da autoria de Mozart Pereira
Soares, veterinário, professor e escritor que chegou a estar à frente do templo
de Porto Alegre.
Em 1989, Soares Pereira publicou "O
Positivismo no Brasil, 200 anos de Augusto Comte", oferecendo uma espécie
de ponto de vista gaúcho sobre o tema, sem com isso querer dizer que se trata,
de facto, de uma nova visão, até porque, no capítulo dedicado à difusão do
positivismo e do "ingresso da doutrina no Brasil", Soares Pereira se
sustenta no trabalho de Ivan Lins.
E é pela origem redescoberta por Lins que
Soares Pereira começa: "Durante muito tempo admitiu-se que ele
[positivismo] tivesse penetrado em nosso país pelo ensino das ciências exactas,
matemática e astronomia, através da Escola Militar e da Marinha de Guerra, no
Rio de Janeiro, ou ainda mediante as lições da física e da química, na Escola
Politécnica."
Mas, continua, "sabe-se agora que ele
apareceu no Brasil por intermédio da biologia: em 1844 (5 de Setembro), Justiniano
da Silva Gomes, lente substituto da cadeira de Fisiologia na Faculdade de
Medicina da Bahia, apresentou e sustentou a tese de concurso para a citada
cátedra, sob o título: "Plano e método de um Curso de Fisiologia".
Nota Soares Pereira que "a tese foi
defendida apenas dois anos após a publicação do último volume do Curso de
Filosofia Positiva (1842)", concluindo que, "por esses elementos,
Ivan Lins, autor da História do Positivismo no Brasil, considera Justiniano o
primeiro positivista brasileiro".
Acrescentou Lins e sublinhou Soares Pereira:
"A partir daí, acentua-se no país uma atmosfera de Positivismo difuso, a
princípio entretida por alguns brasileiros, discípulos directos de Augusto
Comte, que vieram exercer aqui suas actividades, ou de pessoas que mantiveram
em Paris relações com o filósofo (...)".
No entanto, ressalva Soares Pereira,
"está por ser esclarecida a influência que tiveram esses alunos de Comte
na difusão do Positivismo entre nós".
Mais certo, para Ivan Lins, foi o poder das
ideias. E o positivista/historiador não podia ser mais enfático, ao ponto de
afirmar que, "sem a existência, no Brasil, de um ambiente saturado de
positivismo, devido aos que, em graus diversos, muito antes do Apostolado, e
fora dele, aderiram às linhas básicas das doutrinas de Augusto Comte, a
influência destas últimas, no momento da fundação da República, teria sido um
milagre tão inexplicável quanto o de Minerva ao sair armada de elmo, escudo e
lança, da cabeça de Júpiter".
Defendendo que as raízes do positivismo
"vinham de longe", Lins traça ligação até à "actividade
intelectual dos portugueses", que, "como faz ver o Professor Cruz
Costa, citando Lothar Thomas — 'orienta-se para um sentido positivo, para uma
forma concreta de pensamento, que se afasta e diferencia dos moldes das
culturas dos demais países da Europa medieval, sendo fácil, desde a Idade
Média, verificar no pensamento português a constância de uma posição empírica,
pragmática' (...)".
No Brasil, continua Lins, "essa tendência
não só persistiu, mas ainda se acentuou, como o prova o desinteresse
generalizado do brasileiro em relação às cogitações de natureza puramente
abstracta ou metafísica".
Segundo aponta o sítio www.bandeiranacional.com.br, o desconhecimento
em relação à história e significado da bandeira chega às mais altas instâncias
da nação. Na página electrónica da própria Presidência da República (http://www2.planalto.gov.br/acervo/simbolos-nacionais/bandeira/bandeira-nacional),
por exemplo, pode ler-se: "As estrelas, que fazem parte da esfera,
representam a constelação Cruzeiro do Sul", quando, na verdade, "as
estrelas que estão na bandeira do Brasil pertencem a nove constelações e não
apenas uma".
Lins, Ivan, "História do Positivismo no Brasil", Brasiliana,
volume 322, São Paulo, 1967, página 5